_A piada cicatriz.

A navalha constante no pescoço.

A risada conivente de quem escuta e esboça um sorriso.


Existem piadas que não têm graça. São navalhas. Pequenos bisturis afiados, disfarçados de palavras, que cortam fundo e deixam uma marca que nunca mais desaparece. Uma cicatriz. 

Eu coleciono algumas. 

A minha primeira foi desenhada aos doze anos. Eu era o que era: um menino gordinho, com o corpo em uma transição desajeitada (eu tinha ginecomastia) e uma feminilidade que transbordava sem pedir licença. Cheguei na escola, com o uniforme que me mal me servia, e minha melhor amiga, a pessoa em quem eu mais confiava, olhou para mim e disparou, com a naturalidade de quem comenta o tempo que chove lá fora: 

“— Nossa, você já tem voz e jeito de mulher, peito de mulher... agora só falta você menstruar!” 

Ela riu. Outros riram. Eu não. Eu congelei. O som do sinal da escola, os outros alunos correndo, tudo se tornou um ruído distante. Naquele instante, o mundo me sentenciou. E o pior: a carrasca foi minha melhor amiga. Depois daquele dia, nunca mais usei apenas a camiseta do uniforme. Passei a vestir camadas. Uma, duas, três camisetas por baixo do uniforme, e um colete de moletom por cima. Uma armadura de tecido para esconder uma característica física que me disseram ser erradaCobri meu corpo feito burca nos verões mais quentes, o suor escorrendo, preferindo o desconforto do calor à nudez da vergonha. 

A gente cresce. A gente acha que cria casca, que o tempo endurece a pele. É mentira. As lâminas só ficam mais sofisticadas. 

Outro dia, em uma barbearia, um lugar supostamente neutro. Corto meu cabelo, um ato banal de manutenção. Um cliente, um homem que eu nunca vi na vida, olha para mim através do espelho e diz, alto o suficiente para que todos ouçam, com um sorriso de canto na boca: 

“— Sabia que em Alegrete não tem viado? Lá a mãe já mata quem é bicha no útero, nem chega a nascer.” 

O barbeiro congela por um segundo com a tesoura no ar. Eu vejo o reflexo do homem esperando minha reação. E, de novo, o mesmo veneno de anos atrás me paralisa. A perplexidade. A mente que busca uma resposta genial, uma frase de efeito, um soco verbal, mas não encontra nada. O cérebro trava. O sangue gela. E tudo que eu consigo fazer é vestir, mais uma vez, o silêncio que me vestiram aos doze. 

É assim que a cicatriz se forma. Não é só a palavra que corta. É o nosso silêncio forçado que a costura para sempre na nossa pele. A resposta perfeita que só vem horas depois, no chuveiro, quando já é inútil. A raiva que se transforma em vergonha de não ter reagido. A frase dele, dita em segundos, passa a morar dentro de mim para sempre. 

E ele? O dono da piada? Ele guarda sua navalha de volta no bolso. Paga o corte, sai do salão e segue com sua vida de plástico, sorridente, sem marcas. Para ele, foi só uma frase. Um comentário. Uma piada. Para mim, foi mais uma cicatriz. 

É isso que eles não entendem. A homofobia fantasiada de piada nos assassina aos poucos, pois ela nos ensina que não somos dignos. Que nossa existência é um erro, um alvo, uma piada pronta e torta da natureza. 

Parem de afiar suas facas e canivetes. As palavras de vocês também perfuram e as cicatrizes que carregamos, acreditem, nunca param de sangrar. A hemorragia interna é subjetiva, mas impossível de ser contida. 

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