MANIFESTO
Por todas as vezes que tive que me esconder no recreio.
Por todas as vezes que tive que fingir quem eu era.
O corredor da escola é o primeiro professor que a gente encontra antes de chegar na sala de aula. Ensinada na hora do almoço de domingo, quando a cerveja corrompe a educação, a homofobia arma crianças e adolescentes com as pedras mais pesadas contra a existência humana. "AQUELES NÃO PODEM AMAR" ou "DEUS ME LIVRE DE TER UM FILHO BICHA" são suficientes para se construir um exército de ódio em cada andar, em cada canto da f*cking escola.
Eu fecho os olhos e ainda sinto o cheiro daquele lugar. Uma mistura de desinfetante, borracha e ódio com bolacha recheada. O aroma do meu medo que escorre no meu braço carregado de suor. Eu fui a criança viada. O menino gordinho, de gestos que eles chamavam de viadagem, de voz que não se encaixava no coro dos machos de 12 anos de idade. Eu era o alvo fácil, a piada pronta e embalada pra presente, o saco de pancadas para a masculinidade frágil dos outros quando o sinal encerrava o dia escolar. A volta pra casa? Um verdadeiro pesadelo. Pensar em voltar no dia seguinte? Uma tortura insone e destrutiva.
Essa minha história não tem dono. Ela não é só minha. Ela se repete em algum pátio de colégio, em alguma quadra de esportes, em algum espaço de lazer-trauma de um condomínio qualquer. Neste exato momento, outra criança viada está aprendendo a se encolher, a baixar os olhos, a transformar o próprio corpo em um esconderijo, a calar-se para não chamar a atenção dos amigos do pagode. "Filho estranho esse do Marcão..." .
É aqui que eles nos ensinam a primeira lição: o mundo não é um lugar seguro, e muito menos para todos. "VOCÊS PERTENCEM AO ARMÁRIO!", gritam eles a qualquer sinal de feminilidade. "DEUS VAI TE CURAR, MEU FILHO", crê a maluca crente do prédio da esquina. E essa lição nós aprendemos bem demais. Nos fechamos, nos isolamos, nos fantasiamos do que não somos por vocês. Todo o sofrimento, vergonha e auto rejeição que passamos são pra vocês. Vocês gozam com as nossas dores. Sorriem com os nossos corpos nas valas. Nos enfiam goela abaixo o azul quando queremos o rosa. Nosso amadurecimento psicológico é uma eterna preparação para uma guerra que, para nós, nunca acaba, nem na melhor sala de terapia.
Mas para muitos, ela de fato acaba. Cedo demais.
Penso nas crianças viadas que são assassinadas antes mesmo de suas histórias começarem de verdade. Os corpos que tombam antes de aprenderem a dançar. As bocas que são lacradas antes de darem o primeiro beijo GAY. Corações que são parados antes de conhecerem o primeiro amor GAY. Vidas que são roubadas antes de sentirem o primeiro gozo GAY.
É um genocídio de futuros. Um extermínio de primeiras vezes que nunca acontecerão.
Por isso, meu pedido hoje não é por aceitação. Não é por amor, nem por bandeiras coloridas em vitrines de loja da burguesia descolada. Meu pedido é mais básico, mais cru.
Virem o rosto se o meu jeito os incomoda. Ignorem se a minha existência ofende o deus de vocês. Pensem o que quiserem dentro de suas fortalezas de hipocrisia, mas nos deixem correr.
Nos deixem correr no corredor da escola. Nos deixem atravessar a rua sem sermos perseguidos. Nos deixem existir no mesmo espaço que seus filhos, seus alfas evangelizados.
Não precisamos do seu amor e rejeitamos o seu julgamento sem concessão.
Só precisamos do nosso ar.
Deixem a gente respirar.
Deixem a CRIANÇA VIADA correr.
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